quarta-feira, 7 de maio de 2008

Quase plagiando




CARTA PARA ANA, MINHA AVÓ



Tens noventa anos.
Fisicamente és velha, dolorida nem tanto. Foste bela no teu tempo. Sabes ler, escrever e contar por via do vil metal que teus pais pagaram. Tens as mãos um pouco deformadas e os pés sem joanetes.
Toda a vida orientaste trabalhadores rurais nas próprias terras que herdaste e de onde sempre viste o nascer e o pôr do sol. Ias ao largo da Igreja contratar pessoal depois de conversares com os teus colegas de profissão sobre o preço da jorna.
Cortavas trapos que eu enrolava em bola, depois de cosidos, para uma qualquer manta, enquanto me contavas histórias, ao serão, à luz do velho candeeiro de petróleo. Às vezes, enquanto eu lia uma história infantil, fazias as contas do pessoal, para assim poderes fazer pagamentos no dia seguinte.
De ti ouvi contar certas questões de família,...
“ Trave da tua casa, lume da tua lareira” duas vezes engravidaste e duas vezes deste à luz. Não tiveste tempo para mais. A guerra levou-te o marido na idade em que mais o devias ter. Sabes muito do mundo. Entendes política e contas-nos episódios desde o regicídio até bem dentro da ditadura. Conheces economia, alguma literatura, a filosofia empírica da vida e, a fundo, a religião. Tens mais do que o vocabulário elementar, pois o herdaste com os pertences. Afliges-te com o sofrimento humano, (doenças, catástrofes, guerras...) mas não com o roubo dos coelhos das vizinhas. Na urbe cabem mil aldeias e era impossível conhecer todos.
Nunca te conheci ódio porque o não conheceste. Dedicações, sim, conheci-te muitas, assentes no muito ou pouco que te mereciam as amizades.
As palavras Vietname, como Iroshima e Nagasaki diziam-te muito, porque adoravas ouvir as notícias na rádio e lê-las nos jornais. Com os familiares da mesma idade, procuravas saber causas e consequências desses fenómenos que tanto te massacravam psicologicamente.
Nunca conheceste a fome, nem a deixaste conhecer a quem estivesse perto de ti. Na tua serena fisionomia, no teu rosto claro e rosado, escondias o “teu pequeno casulo de interesses”.
Eras alegre e os teus olhos claros faziam jus à tua alegria. Tanta vez te vi rir!
“Estou diante de ti” e bem te entendo. Sou da tua carne e sangue, criaste-me como foste criada e por isso bem te entendo. Vieste a este mundo como mais tarde tu o deste em seguida. Lidaste a tua casa, o teu quintal, conversaste com os lagareiros no lagar, alimentaste vindimadores, baptizaste e casaste vários filhos seus. De toda aquela gente eras madrinha, mesmo sem o seres.
Foste bela e muito inteligente para a época. Conheceste o mundo e por ele sofreste. Nunca precisaste, em altura alguma, que to mostrasse. Nunca poderia saber dele mais que tu.
Nunca nos sentámos à soleira da porta, porque era feio e vivíamos num prédio. Mas, localizávamos constelações sentadas à varanda, em noite estival. Viajávamos pela estrada de Santiago à luz de candelabros siderais da negra cúpula pintalgada que nos envolvia. Imaginávamos histórias de santos e de fé, como a de Sta Teresinha, quando, com apenas 4 anos, disse ao pai, olhando o Universo: “O meu nome está escrito no céu.”
Também me disseste imensas vezes que: “ O mundo é tão bonito!”, mas nunca me disseste que terias pena de morrer.
Sabias, porém, que o fio da vida era a luz esbatida da candeia de azeite, assim como sabias que a chama acabaria quando o azeite acabasse.
São todos estes saberes que eu entendo e só não te entendi melhor porque também tu não tiveste culpa.


Desculpem, senhores, mas a belíssima carta de José Saramago a “Josefa minha avó”, fez-me regressar à infância onde a miséria existia, verdade se diga, o compadrio existia, verdade se diga, mas também verdade se diga, que nada desapareceu ainda.




Lembrando a avó desaparecida

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